domingo, 29 de maio de 2016

Estupro: uma arma de guerra

O estupro não é um ato sexual, mas um ato de violência. Um ato que ameaça a continuidade saudável da existência da pessoa que sofreu o ato, obrigada a prover um gozo da qual não participa, mas acima de tudo submetida aquém de sua vontade. 

 A arte da guerra é uma cultura disseminada ao redor do mundo por milhares de anos. Os conflitos entre diferentes grupos diferem em seus motivos, mas seguem uma lógica de dominação e soberania de um pensamento, território e diversos outras formas de expressar a superioridade de um grupo sobre o outro. Basicamente, há a intenção de destruir e/ou dominar um outro diferente através da expressão de um poderio ideológico, financeiro ou bélico, cabendo aos que sobram submeter-se ao vitorioso.

Dentre as armas que podem ser utilizadas daquele que tem maior poder, encontra-se o estupro. Durante muito tempo violar corpos esse ato tão cruel tem sido utilizado como forma de dominar o inimigo, e o crime de estupro durante tais situações não encontram em si números ou forma que possamos ter noção de sua dimensão, principalmente pelo silêncio das vítimas, que muitas vezes sentem vergonha e medo de fazerem a denúncia.

Vítima de estupro no Congo,
foi abandonado pela esposa
por ela não aceitar o que aconteceu.
Fotógrafo: Will Storr

Há um tempo atrás, li uma matéria no The Guardian, escrita por Will Storr, que dizia sobre uma arma secreta utilizada na guerra: o estupro de homens (link para a matéria em inglês: http://www.theguardian.com/society/2011/jul/17/the-rape-of-men), e traz um relato sofrido de um homem do Congo que em segredo sofre as feridas resultantes dos estupros que ele sofreu enquanto foi feito prisioneiro no conflito. Depois dessa matéria, li outros relatos chocantes de homens que quebraram o silêncio e contaram sobre a violência que sofreram enquanto foram feitos prisioneiros durante algum conflito. No topo da minha memória está a de um jovem mexicano, que durante os conflitos entre estudantes e a polícia mexicana foi levado como prisioneiro e torturado para fazer algum tipo de confissão, a violência sexual sendo utilizada como um dos métodos de tortura, e motivo pelo qual seu pai não o aceitou mais em casa.

Diante de todas as leituras percebi que o grande sofrimento dos homens que foram submetidos a violência do estupro estava na sensação de ser colocado em posição de vulnerabilidade diante de alguém que naquele momento detinha o poder sobre a vida deles. No caso descrito no por Will Storr, Jean Paul, a vítima de estupro que lhe conta o relato, diz que não conta a ninguém pois teme ser abandonado por sua família. Apesar de seu irmão o acompanhar as consultas médicas, ele confessa que o irmão não sabe da real violência que ele sofreu “Eu não quero dizer a ele. Temo que ele diga: ‘Agora meu irmão não é um homem’”, diz Jean Paul (nome fictício).

O maior medo desses homens que sofreram tais crimes é de que eles não possam mais exercer a masculinidade, que tenham se tornado pessoas vulneráveis, não sejam mais considerados fortes, que não possam mais prover uma família e que não sejam mais homens.

Ora, não seria esse o objetivo dos conflitos? Tornar o inimigo vulnerável e dominá-lo? Que ele não possa mais prover a si mesmo, que ele viva com medo e que esteja facilmente submetido ao poder do vitorioso? Os homens que sofrem essa violência traduzem esse sentimento de vulnerabilidade como “não ser mais homem”, não ter a virilidade que carregou durante tanto tempo, que supostamente o protegia da... inexistência?

Mesmo em tempos de “paz”, as mulheres são estupradas. O medo que os homens tem em conflitos e situação de encarceramento é o medo diário de todas as mulheres, como é dito por muitos ultimamente. No entanto, a questão que quero colocar aqui, e que para mim existe uma resposta ainda em construção, mas que pelo menos tem sido construída, é: Por que durante a guerra a arma de dominação é o estupro, e no cotidiano “pacifico” é prática cultural executada contra mulheres?
Talvez estejamos constantemente em guerra, e estamos sendo dominadas dia após dia, talvez a opressão do machismo seja bem maior do que eu imaginava ao lutar contra as imposições de conduta, talvez seja ameaça a nossa própria existência, pois a sensação que fica ao que dizem “temo que achem que não sou mais homem” é a de que na verdade querem dizer “temo que seja visto enquanto mulher, que eu não exista mais”.

Não, não é por não conseguir controlar seus instintos masculinos. Não, não é por ter entendido direito. Não, não é pela roupa, atitude, estado de consciência. O estupro é para dominar, para violentar a dignidade, para submeter, para marcar a sua superioridade, para marcar sua vitória na guerra. 

E sim, não ser estuprada é sorte.

Sobre a autora: Rach é psicóloga, tem tentado ser escritora e vive na internet desde que isso tudo era capim. Quando criança, perguntou certo dia a sua mãe porque ela dizia "não vou colocar meus filhos homens para lavar a louça se tenho uma moça em casa", e depois de tantas outras perguntas sem resposta, se apaixonou pela bruxaria, se indignou com o machismo e se descobriu feminista.






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