segunda-feira, 30 de maio de 2016

A liberdade que encontrei no feminismo (desabafo)



Fênix: simboliza, também, o renascimento.

Semana passada foi um pouco duro ser mulher, não que desde "Eva" não seja, mas tal semana foi insuportavelmente cruel com nós mulheres... Foi a semana que nos deparamos com os horrores que a sociedade patriarcal causam: estupro, descrença, agressões, todo tipo de violência... Logo percebi que eu não sou mais a mesma, não consigo ri da mulher que e feita de chacota, não acho engraçado as piadinhas machistas, não desce a garganta as postagens culpando o funk, a roupa, a mãe, a avó, etc... A culpa é de TUDO, menos do estuprador (o macho)...  Os humoristas misóginos perderam a graça, os amigos machistas perderam a graça, algumas postagens perderam a graça, porque o alvo é sempre as minorias, onde não se tem muita voz, nunca se teve... Há tempos que não concordo com a maioria e isso causa incomodo, estranheza, sou tida como "problematizadora", como  "chata", "alienada"... Minhas crenças divergem, diverge da opinião de alguns grupos, diverge da família, diverge do senso comum... Percebi essa semana que mudei muito, mudei pra melhor, que compreendi o espaço que me foi dado desde que nasci e a importância que tenho em descontruir ele. A nós não foi dado nada, só descrença, somos subjugadas, amordaçadas, silenciadas e ainda há quem tenha dúvida da importância do feminismo... Não temos representatividade no espaço público, não temos voz no espaço privado, não temos ninguém ao nosso lado a não ser nós mesmAs. Me sinto mais angustiada, um pouco niilistas e bastante existencialista, porém me sinto livre, não tenho obrigação de falar nada pra agradar pessoas, não me importa ser aceita ou não, me importa dá voz as minorias e entre elas as mulheres! Avante manas e sempre juntas! O feminismo liberta (e descontrói).

Em tempo, deixei de seguir algumas pessoas nas redes sociais, me fez bem, muito BEM!
 
Sobre a autora: Tatiane Rafailov é Psicóloga Clínica, feminista e mãe. Adora cinema, séries e cultura POP. Nas horas vagas escreve bobagens, devaneios, poesias e coisas sérias para extravasar a difícil tarefa de ser e existir. 

domingo, 29 de maio de 2016

Estupro: uma arma de guerra

O estupro não é um ato sexual, mas um ato de violência. Um ato que ameaça a continuidade saudável da existência da pessoa que sofreu o ato, obrigada a prover um gozo da qual não participa, mas acima de tudo submetida aquém de sua vontade. 

 A arte da guerra é uma cultura disseminada ao redor do mundo por milhares de anos. Os conflitos entre diferentes grupos diferem em seus motivos, mas seguem uma lógica de dominação e soberania de um pensamento, território e diversos outras formas de expressar a superioridade de um grupo sobre o outro. Basicamente, há a intenção de destruir e/ou dominar um outro diferente através da expressão de um poderio ideológico, financeiro ou bélico, cabendo aos que sobram submeter-se ao vitorioso.

Dentre as armas que podem ser utilizadas daquele que tem maior poder, encontra-se o estupro. Durante muito tempo violar corpos esse ato tão cruel tem sido utilizado como forma de dominar o inimigo, e o crime de estupro durante tais situações não encontram em si números ou forma que possamos ter noção de sua dimensão, principalmente pelo silêncio das vítimas, que muitas vezes sentem vergonha e medo de fazerem a denúncia.

Vítima de estupro no Congo,
foi abandonado pela esposa
por ela não aceitar o que aconteceu.
Fotógrafo: Will Storr

Há um tempo atrás, li uma matéria no The Guardian, escrita por Will Storr, que dizia sobre uma arma secreta utilizada na guerra: o estupro de homens (link para a matéria em inglês: http://www.theguardian.com/society/2011/jul/17/the-rape-of-men), e traz um relato sofrido de um homem do Congo que em segredo sofre as feridas resultantes dos estupros que ele sofreu enquanto foi feito prisioneiro no conflito. Depois dessa matéria, li outros relatos chocantes de homens que quebraram o silêncio e contaram sobre a violência que sofreram enquanto foram feitos prisioneiros durante algum conflito. No topo da minha memória está a de um jovem mexicano, que durante os conflitos entre estudantes e a polícia mexicana foi levado como prisioneiro e torturado para fazer algum tipo de confissão, a violência sexual sendo utilizada como um dos métodos de tortura, e motivo pelo qual seu pai não o aceitou mais em casa.

Diante de todas as leituras percebi que o grande sofrimento dos homens que foram submetidos a violência do estupro estava na sensação de ser colocado em posição de vulnerabilidade diante de alguém que naquele momento detinha o poder sobre a vida deles. No caso descrito no por Will Storr, Jean Paul, a vítima de estupro que lhe conta o relato, diz que não conta a ninguém pois teme ser abandonado por sua família. Apesar de seu irmão o acompanhar as consultas médicas, ele confessa que o irmão não sabe da real violência que ele sofreu “Eu não quero dizer a ele. Temo que ele diga: ‘Agora meu irmão não é um homem’”, diz Jean Paul (nome fictício).

O maior medo desses homens que sofreram tais crimes é de que eles não possam mais exercer a masculinidade, que tenham se tornado pessoas vulneráveis, não sejam mais considerados fortes, que não possam mais prover uma família e que não sejam mais homens.

Ora, não seria esse o objetivo dos conflitos? Tornar o inimigo vulnerável e dominá-lo? Que ele não possa mais prover a si mesmo, que ele viva com medo e que esteja facilmente submetido ao poder do vitorioso? Os homens que sofrem essa violência traduzem esse sentimento de vulnerabilidade como “não ser mais homem”, não ter a virilidade que carregou durante tanto tempo, que supostamente o protegia da... inexistência?

Mesmo em tempos de “paz”, as mulheres são estupradas. O medo que os homens tem em conflitos e situação de encarceramento é o medo diário de todas as mulheres, como é dito por muitos ultimamente. No entanto, a questão que quero colocar aqui, e que para mim existe uma resposta ainda em construção, mas que pelo menos tem sido construída, é: Por que durante a guerra a arma de dominação é o estupro, e no cotidiano “pacifico” é prática cultural executada contra mulheres?
Talvez estejamos constantemente em guerra, e estamos sendo dominadas dia após dia, talvez a opressão do machismo seja bem maior do que eu imaginava ao lutar contra as imposições de conduta, talvez seja ameaça a nossa própria existência, pois a sensação que fica ao que dizem “temo que achem que não sou mais homem” é a de que na verdade querem dizer “temo que seja visto enquanto mulher, que eu não exista mais”.

Não, não é por não conseguir controlar seus instintos masculinos. Não, não é por ter entendido direito. Não, não é pela roupa, atitude, estado de consciência. O estupro é para dominar, para violentar a dignidade, para submeter, para marcar a sua superioridade, para marcar sua vitória na guerra. 

E sim, não ser estuprada é sorte.

Sobre a autora: Rach é psicóloga, tem tentado ser escritora e vive na internet desde que isso tudo era capim. Quando criança, perguntou certo dia a sua mãe porque ela dizia "não vou colocar meus filhos homens para lavar a louça se tenho uma moça em casa", e depois de tantas outras perguntas sem resposta, se apaixonou pela bruxaria, se indignou com o machismo e se descobriu feminista.






terça-feira, 24 de maio de 2016

Precisamos falar sobre relacionamentos abusivos...

 
Todas nós, infelizmente, já tivemos (ou estamos) em contato (dentro ou fora) com os relacionamentos abusivos.
Falar desse assunto, implica englobar as diversas formas relacionais as quais estamos envolvidas: familiar, conjugal, profissional, etc. Esse texto será direcionado as relações conjugais/amorosas.
Do meu ponto de vista (que é um ponto mesmo no infinito) percebo que naturalizamos violência como abusos físicos, porém o ato vai além...  O ministério da saúde dá por conceito de violência “o evento representado por ações realizadas por indivíduos, grupos, classes ou nações que ocasionam danos físicos, emocionais, morais e ou espirituais a si próprio ou a outros", logo, para identificarmos uma relação abusiva, será necessário considerar a presença de inúmeros atos de violência, alguns quase imperceptíveis aos olhos, principalmente, da vítima.
Primeiramente é importante que se entenda que qualquer ação que tire sua liberdade é um ato de abuso. Quando seu companheiro (a) pede "carinhosamente" (ou não) para que você não vista aquela roupa, ou que não saia para aquele lugar sozinha, ou que não coloque aquele batom, ou que não ande com aquela amiga, aí está ocorrendo ABUSO, pois é tirado seu direito de escolha.
Há alguns sinais de alerta que nossos (as) companheiros (as) nos dão, mas que muitas vezes pela fragilidade emocional (ou outras questões) não percebemos. Um exemplo é a "difamação da ex": quando a pessoa culpa a antiga companheira de tudo que deu errado em seu antigo relacionamento, tirando assim a sua própria responsabilidade e facilitando a criação da, tão comum, rivalidade feminina... Nesse caso vale lembrar que a próxima "ex louca" será VOCÊ! Então é importante ter sororidade até mesmo nessas horas, questionar, tentar entender o contexto para não demonizar a mulher em um espaço que é ocupado por dois, afinal não se faz relacionamento com uma só pessoa.
Como identificar se você está em um relacionamento abusivo? 
Quando há presença de violência física ou sexual, fica claro que a relação é abusiva, mas quando ela é de cunho psicológico, simbólico ou financeiro (ou tudo isso junto) fica mais difícil de compreender ou aceitar que você é vítima de uma relação abusiva. Alguns passos que podem ajudar a identificar:
  1. Questione-se: pergunte a si mesma se você têm deixado de fazer coisas que você gosta, para não desagradar seu parceiro (a);
  2. Fique atenta ao discurso: tente perceber se alguns pedidos que são feitos a você implicam na perda da sua autonomia ou liberdade;
  3. Atente-se aos comportamentos do outro: perceba como a pessoa trata outras mulheres (mãe, irmãs, amigas), se as despreza, xingam ou tiram seu espaço de fala;
  4. Autoconhecimento: tente deixar suas emoções claras para você mesma, e perceba se você têm se sentido angustiada, com medo ou sozinha;
  5. Procure ajuda: se você constata que está em um relacionamento abusivo, procure ajuda psicológica e nas redes de apoio¹.
 



 
É preciso esclarecer alguns pontos:
  • Identificar uma relação abusiva não implica necessariamente que você terá que terminar seu relacionamento. Com o acompanhamento necessário, o casal pode ressignificar os papéis que ocupam na relação, transformando-o em um relacionamento saudável;
  • Os abusos não são exclusivos de relacionamentos héteros, eles estão presentes também nas relações homoafetivas;
  • O empoderamento é uma grande arma para o enfrentamento de qualquer tipo de violência.
Enfrentar uma situação difícil com apoio é muito mais fácil, ajudem as mulheres!
 

¹Livre de abuso é um projeto maravilhoso que é uma MEGA rede de apoio para as vítimas e para quem quer ajudar as vítimas de violência. Há também uma pagina do Governo Federal que vale muito a pena o clique Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher.
 
Sobre a autora: Tatiane Rafailov é Psicóloga Clínica, feminista e mãe. Adora cinema, séries e cultura POP. Nas horas vagas escreve bobagens, devaneios, poesias e coisas sérias para extravasar a difícil tarefa de ser e existir. 

As armadilhas do Estatuto do Nascituro e da PL 5069/13


                                                     imagem retirada do google imagens site: reddit.com

Precisamos falar sobre a Descriminalização do Aborto e precisamos falar agora e urgentemente. Porque a Câmara não vai esperar que resolvamos nossos conflitos internos pra passar por cima de nossa autonomia.
Os projetos de lei em pauta na Câmara são um risco para os direitos das mulheres, pois o primeiro dificulta inclusive os abortos previstos em lei e o outro dificulta o acesso à saúde pelas vítimas de abuso, punindo quem orienta pelo aborto e revitimizando as mulheres ao exigir comprovação do estupro. Daqui a pouco precisaremos de duas vias assinadas pelo estuprador pra não deixar dúvidas sobre o assunto.A verdade é que o congresso se aproveita da mobilização que o assunto traz para incluir artigos que são uma violência contra a mulher.
A polêmica que cerca o tema, sempre faz com que nos inibamos frente às discussões, mas este debate é necessário e precisa ser feito livre do cunho religioso, ético ou moral. Devemos discuti-lo no âmbito do conhecimento técnico e legal e isso não significa desmerecer o ponto de vista moral, mas trazê-lo para uma discussão sócio-histórica que o trate em sua repercussão social, considerando as representações sociais que o aborto suscita.
Em nossa sociedade possuímos o mito da família feliz, de que só é possível ser feliz aos pares. No qual, uma mulher só pode ser completa quando alcança a tríade: cresce, casa e tem filhos. Resultado de nossa herança patriarcal, a posição da mulher na família e na sociedade nos mostra que ainda é difícil para a sociedade estabelecer qualquer relação com o feminino que não seja de poder e dominação dos corpos e autonomia das mulheres.
Essa necessidade de corresponder a um modelo social, faz com que não falemos sobre o aborto. Mas ele ocorre e é uma realidade. Mata milhares de mulheres ao ano.  O aborto, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde é a quinta maior causa de morte materna no Brasil. Além disso, estima-se que 01 em cada 07 mulheres já tenha realizado o procedimento voluntariamente. Milhares de mulheres e adolescentes morrem pela desassistência do sistema ao ano, pois a legislação trata um problema que é exclusivamente de saúde pública, numa instância criminal.
A questão do aborto ultrapassa limites legais, crenças religiosas e convenções sociais. Isso porque a criminalização, nesse caso, não inibe a prática e mata mulheres. Que não podendo realizar procedimentos seguros, recorrem a toda sorte de práticas clandestinas.
Por isso, o cerne de sua discussão precisa ser o fato de que o aborto é previsto no código penal com uma pena de reclusão, o que faz com que mulheres realizem o procedimento na clandestinidade, sem condições mínimas de segurança.
Além disso, a discussão sobre o tema no Brasil está anos luz de atraso na pauta mundial, e, é lamentável que um país que é signatário de tantos tratados na área de Direitos Humanos, continue a discutir o tema com opiniões simplórias e pautadas na imperícia e moralidade.
Repito, o aborto tem que ser discutido no ponto de vista técnico. E isso significa assumir que embora a ciência, sim, a ciência porque estamos num Estado Laico, ou pelo menos deveria ser, não tenha uma definição sobre quando a vida começa é mister considerar que a vida é um conceito bem mais amplo que o mero aspecto biológico do ser. Os médicos já se posicionaram sobre isso, até os três meses de gravidez o feto, embora seja uma vida em potencial, ainda não formou o SNC e isso significa dizer que ainda não possui respostas cerebrais. Sendo possível a realização do procedimento com riscos mínimos para a mulher.
E com isso, não quero negligenciar aquelas que escolhem serem mães. Acredito piamente que a maternidade é um dom e crianças são uma dádiva, mas não necessariamente uma experiência fundamental para todas as mulheres, como a sociedade quer nos fazer acreditar. Tem mulheres que não querem ser mãe e tudo bem. Assim, como tem aquelas que escolhem ser mãe e tudo bem também. Mas é preciso pensar naquelas a quem a escolha não foi facultada. Claro que falar de desinformação numa sociedade globalizada parece distante da realidade. Mas gente, em pleno século XXI tem gente pedindo a volta da ditadura, se isso não é falta de informação, então não sei o que é.
Falando sério, num país de dimensões como nosso, ainda existem meninas que devido a pressão do namorado, cedem ao apelo de não usar camisinha, de considerar que  a tabelinha e o coito interrompido é um método válido. E pasmem, a pílula anticoncepcional não é um método 100% seguro, na realidade sua eficácia é de 98 a 99%, o que nos sobra aquele 1%, que acreditem acontece. 
Mas você pode pensar, idiota dela que cedeu a esse tipo de apelo. Responda-me, sinceramente, você acredita que mulheres são ensinadas a não ceder ao anseio masculino? somos ensinadas a sermos fortes em nossas convicções? Isso pode ser realidade pra você, mulher de classe média que teve oportunidade de estudar e estar num ambiente favorável pra desconstruir o lugar da mulher na sociedade. Mas enquanto aquela adolescente que nunca teve outra vivência que não aquilo que lhe impuseram; e aquelas meninas que sofrem o abuso na família e lhe dão ervas pra esconder a vergonha familiar. Nosso Brasil é muito mais do que os centros metropolitanos.
Garantir a assistência do sistema é garantir humanidade nos atendimentos. Ninguém acorda de manhã e pensa: "Meu Deus, que dia lindo. Acho que vou abortar hoje." Tratar a questão do aborto de forma banal é um desserviço a essas mulheres e uma desonestidade intelectual.
É preciso falar da quantidade de sofrimento psicológico infligido a mulher que passa por uma gravidez indesejada, pois às vezes a gravidez ocorre no corpo, mas não ocorre na cabeça. Isso pode desencadear uma série de adoecimentos, sem falar da dificuldade dessa mãe vincular com uma criança que não é objeto de seu desejo. Ou mesmo dessa criança que não é objeto de desejo de ninguém. Por isso a decisão de ser mãe é algo pessoal, algumas mães conseguem superar o fato da criança não ser desejada naquele momento, outras não. É a mulher quem vivencia o destoante de estar grávida e não desejar aquela criança, quando a sociedade diz que ela deveria. 
Eu posso ser contra a decisão de abortar por questões morais, religiosas, o que for, mas isso não significa que eu deva negar a outras o direito de escolher. Descriminalizar o aborto não vai mudar a opinião de ninguém sobre o tema, mas vai garantir procedimentos seguros para quem precisa fazer um. Primordial lembrar que as pessoas mais afetadas pela clandestinidade são as mulheres pobres e de origem periférica, pois são elas que precisam recorrer ao serviço público.
Aceitar a discussão do ponto de vista técnico, significa reconhecer que a minha opinião moral e religiosa sobre o assunto foi construída a partir de uma série de heranças culturais e convenções sociais  e que é necessário outros construtos sociais para dar conta do tema.
Nunca é demais lembrar que ser a favor do aborto não tem relação alguma com a decisão de abortar. É uma luta pelo direito de escolha. Por um sistema que deixe de privilegiar as classes abastadas, porque não se engane, é axiomático que as ricas abortam e as pobres morrem.

Sobre a autora: Camila Thiari é Psicóloga por missão na vida, atua na área de Direitos Humanos. É Feminista (assim mesmo com "F" maiúsculo). Acredita no direito de escolha e que a cultura é a forma mais autêntica de expressão humana. Nas horas vagas preenche o vazio existencial com séries, livros e filmes.

domingo, 22 de maio de 2016

Bruxa!

retirado do google imagens

Fedida! Tomara que te dê dor de barriga. 

A figura da bruxa, e da bruxaria, está endereçada àquilo que é sujo, maléfico e, principalmente, que contradizem as regras. A literatura (ler: representação feminina na literatura) contribuiu bastante pela consolidação dessa imagem, onde ou a mulher malvada atrairia crianças com doces para comê-los, ou por pura inveja e sentimentos de despeito amaldiçoaria uma recém-nascida.
Nos filmes de terror, essas mulheres são também determinadas, indomáveis, que detestam homens e usam de sua juventude e beleza (em algumas versões dádivas que são roubadas de jovens puras) para praticar o mal, mas nunca para casar, pois a bruxaria é praticada por mulheres solteiras, que usam sua capacidade de ter filhos para dar ao seu consorte, o demônio, com quem poderá realizar todos os seus desejos lascivos.
Engraçado, né? Quando os homens por eles mesmo não podem realizar o domínio sobre as mulheres, é evocado a figura de um homem sobrenatural que exerceria esse domínio.

Migas e eu, aterrorizando Macbeth te-he
retirado do google imagens.
E assim, temos para a mulher um lugar a ocupar que não seja o de esposa, meretriz ou donzela. Temos o lugar da bruxa, da mulher que exerce um poder independente do marido ou do pai.

No livro Malleus Maleficaru, seus autores descreveram o que seria indícios que comprovavam que alguma pessoa era praticante da bruxaria, e apontava as mulheres como as maiores prováveis praticantes, pois suas características naturais as tornavam mais atraídas pelas sedução do demônio. A mulher era descrita como sedutora e mentirosa por natureza, que fazia padecer o homem mais forte, e quando ocupava posições sociais de destaque, longe do domínio de um homem, era ainda mais suspeita.
Com os rígidos ideais morais da igreja cristã da idade média, homens e mulheres tinham que reprimir fortemente seus desejos, em especial no que confere ao desejo sexual. Considerados dotados de senso de justiça, experiência e discernimento, o homem da idade média era forte o suficiente para não ceder às tentações do demônio dos prazeres, excerto que fosse seduzido por algo mais forte que ele mesmo: o feminino, digo, seus próprios desejos.
O feminino em Freud¹ é considerado enquanto parte existente em ambos homens e mulheres, e que por característica seria relacionado a passividade. No entanto, aqui me refiro ao feminino enquanto características na maioria das vezes compartilhadas pelo mundo das mulheres, seu corpo e o mistério culturalmente estabelecido acerca de sua sexualidade.
O feminino tomou culpa no lugar do próprio desejo do homem, seduzido a comer a maçã, não era que ele enfraquecesse em sua moral e desejasse uma mulher casada, mas que aquela mulher através de seu feminino o havia seduzido, e dessa artimanha do diabo ele não podia escapar. Pobrezinho L. Não havia como fugir da condenação da inquisição, se uma mulher era vista como incômodo para comunidade, logo ela seria acusada de bruxaria e as tortura orientadas pelo santo ofício não resultava em nada mais que a condenação da mulher – fosse por suas lágrimas, tentativa de manipulação, ou pela falta delas – a rigidez demoníaca².
Eva quando é seduzida pela serpente a comer a maçã é considerada culpada. No entanto, quando Adão cai na sedução de Eva, ele não é culpabilizado.

Se ela morrer ela é inocente,
se sobreviver é culpada.
do google imagens
Não somente pessoas foram vítimas da inescapável inquisição, mas a cultura partilhada por um povo, seus registros, suas histórias. Juntamente com cerca 100 mil mortes, foi difamado o culto a natureza e ao feminino realizado pelas religiões pagãs. Nessas religiões, o feminino era tido como sagrado, onde deusas eram o centro das religiões, a sexualidade feminina não era condenada e a mulher anciã era reverenciada.
Diante do protagonismo das mulheres nessas religiões, o poder do homem cristão era ameaçado, e com as fantasias de que seriam dominados por mulheres surgiu o medo de perder o poder, traduzidos como medo da morte por terríveis pestes, da vingança divina ou medo de perder seus privilégios a serem encontrados no paraíso ou posições sociais.
Winnicott³, diz que o medo DE MULHER refere-se ao medo que se tem da lembrança da dependência absoluta que todos já tivemos no colo de uma mulher. Olha só que interessante, a mulher é ameaçadora justamente por lembrar que nem homem e nem mulher tem poder absoluto. Ah vá ti catar!!!
Minha intenção ao começar a escrever esse texto era falar sobre a bruxaria, como esse culto diz sobre o feminino, mas percebi que é impossível falar sobre o tema, já que a história da bruxaria está tão marcada difamação. Hoje não se admite a possibilidade de falar sobre a bruxaria desvinculada do cristianismo – da existência de demônios e do culto a satanás -, sendo que se tratam de crenças totalmente diferentes.
do google imagens
Se simplesmente dissesse que a bruxaria é a arte da manipulação da natureza a sua vontade, que busca equilíbrio e respeito com o ambiente, que é recanto do feminino e mantem em si a cultura matriarcal, dificilmente conseguiria transpor a imagem demoníaca que se construiu.
Sempre vivemos enquanto mulheres perseguidas pela inquisição, e esses maldizeres sobre a bruxaria é só mais artificio. Cabe no papel da bruxa o que não cabe no papel de Maria, ideal inalcançável de pureza e maternidade simultâneos.

nota de Gilberto Amaral a respeito da
 ausência de mulheres nos ministérios.

Atualmente no Brasil, podemos ver como esse padrão é tão forte e ameaçador, pois uma cúpula de homem demonizou uma mulher em favor de seus desejos, atribuiu à ela a culpa das nossas pestes atuais, o que foi tão facilmente aceito, embora falte fundamentos legais. E assumiu um homem, vários homens, exercendo a dominação que eles temem tanto perder, e como representatividade para mulheres, elegeu-se a bela, recatada e do lar.

E me abstenho de falar agora sobre como a representação da mulher brasileira enquanto objeto do e de desejo influência em uma epidemia nacional - turismo sexual, pois ainda preciso amadurecer o assunto. No entanto, preciso dizer que quando nos dizem que o nosso ideal almejado é ser bonita e sexy, dizem que tudo o que podemos ser é da cama ou da prateleira.


Atualmente, alguns movimentos tentam rebuscar a bruxaria (os wiccannos, os gardenianos, os dianicos), e algumas mulheres já se orgulham de ostentar o seu título conquistado de bruxas. No entanto, ainda existem países que matam mulheres por praticar a bruxaria, mesmo que não seja a verdade; ainda acham que as bruxas sacrificam crianças e fazem sexo enlouquecidamente com satanás; e temo que jamais conseguiremos reaver a história de nossas irmãs que têm sido queimadas todos esses anos.

1. Freud em 1933, A feminilidade – Novas conferências introdutórias a psicanálise.
2. Isabelle Anchieta, As bruxas e as faces do feminino – Psicologia do feminino, edição especial da Mente e Cérebro.
3. Winnicott em 1989, A família – Tudo começa em casa.

Sobre a autora: Rach é psicóloga, tem tentado ser escritora e vive na internet desde que isso tudo era capim. Quando criança, perguntou certo dia a sua mãe porque ela dizia "não vou colocar meus filhos homens para lavar a louça se tenho uma moça em casa", e depois de tantas outras perguntas sem resposta, se apaixonou pela bruxaria, se indignou com o machismo e se descobriu feminista.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Ela é só mais uma Maria que não quer mais ser silenciada.

Ela nasceu do monturo.
Pobre, preta, desnutrida e sem expectativa de futuro.
Pensando bem,
O seu futuro estava mais que definido.
Ser serva do senhor branco, depois do marido.
  
Aos cinco, foi violada na alma,
Mas ainda assim, tinha que manter-se calma.
“Não diga nada, viu bichinha?
Se falar  vai se dar mal,
Bico calado, ou senão será fatal!”

Assim como havia sido determinado,
Aos nove estava cumprindo o seu legado.
“Tu não prestas pra nada, menina!
Mas trabalhe para mim,
Que te dou roupa usada e comida.
E faça tudo direito, sua mal agradecida!”

Porém, por gostar de aprender,
Ou mesmo por teimosia,
Gostava de ir à escola, lá era gente.
Ela sentia.

E decidiu que seria assim.
Trabalhava aos sábados, domingos e feriados.
Mas, com uma condição:
Da escola não abriria mão.

E mesmo sem acreditar
Que teria um futuro decente,
Aprendeu a sonhar em ser gente.

E graças aos seus professores,
Descobriu que era possível.
Mas precisava de luta ,
Pra deixar de ser invisível.

Além das barreiras internas
É preciso desconstruir a mente de quem governa.
Pois, basta um só argumento
A favor do Movimento,
Para escutar um:
“Eeei! Pare ser vitimista!”
Grita o branco fascista.
É só estudar,
Ter força de vontade
Basta escolher,
Estão aí às oportunidades.

Não aguento mais tanto mi mi mi!
È só trabalhar pra conseguir.
Esses programas sociais
Tem mesmo que acabar,
Isso só serve de desculpa
Pra pobre não trabalhar.

Ela ainda sente medo
Quando tem que se expressar,
Mas sabe que pra se tornar gente,
Não pode mais silenciar,
E então diz: não senhor!
Não me venha com o seu papo de meritocracia,
Força de vontade não combina com barriga vazia.
Não venha deslegitimar a minha luta.
Saia da frente, com esta sua conduta!
Porque neste caminho que estou a trilhar,
Tem mais mulheres, negras, feministas, empoderadas,
Querendo passar.



Sobre a autora:  Deuseli Chagas é psicóloga clínica, nordestina, negra, feminista em construção.  Não é poetisa, mas de vez quando gosta de brincar com as palavras.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Representação feminina na literatura: de objeto de desejo a autora do processo







A literatura, assim como as demais artes e a religião, é um ato político, pois não lemos somente aquilo que queremos, mas lemos e muito aquilo que chega ao nosso alcance. E qual é a literatura que temos acesso? E como a mulher é representada nesses livros? Esses são os questionamentos que nortearão a minha fala de hoje.


Assim como as demais artes, a literatura ainda é uma área extremamente machista e questionar isso é o ponto de partida que nós mulheres temos que dar ao ler um livro. Até o início do século XX a maioria dos livros eram escritos por homens e a representação feminina baseava-se no olhar que esses homens tinham da mulher. Em uma breve pesquisa nessa literatura percebemos que esses autores dividiam a mulher em três tipos: as esposas (ou as amadas), as amantes ou as prostitutas, vide Ilíada e Odisseia de Homero, Romeu e Julieta de William Shakespeare e Dama das Camélias de Alexandre Dumas. Não havia uma classificação intermediária. Outro questionamento acerca dessa representação é que muitas vezes as mulheres eram retratadas como seres puros, quase intocáveis que eram o objeto de desejo dos homens e que tinham como objetivo em suas vidas o de encontrarem parceiros e em especial para casarem. Em contraste tínhamos a mulher impura que vende seu corpo e que da mesma forma é vista como um objeto de compra e venda e que não tinham tanta vontade própria também. E como falamos anteriormente, como essa era a literatura que as mulheres tinham acesso, as mulheres que liam somente esses livros muitas vezes aceitavam esses papeis sem qualquer questionamento. Essa restrição das personagens mulheres na literatura só repete essa cultura de opressão e ao percebemos a necessidade de haver diversidade na nossa leitura percebemos que existem outras realidades que devem e precisam ser representadas.


Um outro questionamento muito pertinente acerca do machismo na literatura refere-se ao preconceito que as mulheres sofreram e sofrem ao se tornarem autoras. Se pararmos para pensar em quantas mulheres nós conhecemos que leem livros escritos por homens, nossa resposta pode ser todas ou quase todas, mas se pensarmos o contrário, quantos homens conhecemos que leem livros escritos por mulheres, o número já não é o mesmo. Muitos homens não conseguem ver a literatura escrita por mulheres como literatura, mas apenas como literatura de “mulher”, como se isso pudesse existir. Como observamos anteriormente, livros escritos por homens podem ser tão segregados quanto livros escritos por mulheres.

Infelizmente o que vemos é que pouquíssimos livros escritos por mulheres figuram nas listas de livros considerados clássicos, que muitas autoras sequer são traduzidas para nossa língua por não terem qualquer visibilidade aqui. Por isso eu venho aqui propor um momento de dedicarmos o nosso olhar as mulheres escritoras que tanto contribuíram e contribuem para as nossas vidas não somente como mulheres, mas como seres humanos. Pois dizer que não há sentido em questionarmos os padrões que eram e são impostos as mulheres seria a mesma coisa de dizer que está tudo bem e que nada precisa mudar e o noticiário dos últimos dias tem nos mostrado o contrário, que precisamos mudar e com urgência, pois nem todas a mulheres foram criadas ou devem ser criadas apenas para seres belas, recatadas e do lar, as mulheres dever ser o que elas quiserem, mas elas precisam ter o direito a escolher e não esse direito lhes ser imposto como única escolha possível e que venham as mulheres maravilhosas da literatura com seus textos maravilhosos e que esses textos nos alimentem a ir além, nos motivem a buscar nossos eu interiores, como donas do nosso destino e não apenas mero objeto do imaginário dos outros.
 

Sobre a autora:  sou Patrícia Piquiá, professora de inglês, nerd, feminina e feminista, amante da literatura, cinema, séries, artes plásticas e música. 



terça-feira, 17 de maio de 2016

As Sufragistas e o que elas no ensinam sobre representatividade

(Imagem promocional do filme)

Primeiramente, é importante situar aqueles que não conhecem a história das sufragistas. O filme é baseado na história real da luta por direitos sociais na Inglaterra do final do século XIX, onde mulheres eram relegadas a funções subalternas na indústria da tecelagem.
Inconformadas com as péssimas condições de trabalho e com o fato de não serem ouvidas, algumas mulheres passaram a protestar pelo direito ao voto, direito ao sufrágio universal, daí a denominação do filme.
O termo sufrágio universal, na definição do dicionário representa o exercício do direito daqueles que tem capacidade legal, isto é, intelectualmente capazes. Essa definição nos países democráticos abarcava apenas homens adultos até o século XX. 
Nessa época, as mulheres não tinham voz na indústria, na política ou em qualquer espaço social, pois predominava-se a cultura do patriarcado instituída pela Roma Antiga em que o poder era centrado no homem. Aqui abrimos um parentese, pois conforme vimos no texto: "Um breve histórico da Sexualidade feminina", o patriarcado nem sempre existiu enquanto discurso normativo. Passando a instituir as relações do poder e de gênero, principalmente a partir da disseminação do cristianismo.
Importante ainda ressaltar como o "Zeitgeist" da época foi determinante para o surgimento de teorias feministas, isso porque aquele momento da história estava marcado pela necessidade de novas configurações sociais que se adequassem a história corrente, pois as relações de trabalho, de lar, sociais já não encontravam lugar nos discursos patriarcais, que relegavam a mulher o cuidado da família e ao homem o provimento do lar. As mulheres tinham jornadas exaustivas de trabalho e não dispunham dos mesmos direitos e garantias dos homens.
E com essa necessidade de buscar novas construções sociais para dar conta da realidade, surge o movimento das sufragistas. Sendo importante esclarecer isso, pois nenhuma teoria surge desconectada da realidade em que vivemos, ela surge precisamente para corresponder a um ponto da realidade. 
E nesse sentido, o filme traz uma reflexão importante: Por que conquistar o voto era tão importante que levou a uma luta de classes e fez com que mulheres morressem por isso? O que as sufragistas desejavam era poder fazer as leis de forma que elas também atendessem as necessidades das mulheres.
É aí que entra a importância de representatividade feminina. Para entender o que significa essa coisa chamada representatividade, é necessário entendermos o que é o sufrágio e qual a importância dele na sociedade. O Sufrágio ou o direito ao voto é uma importante ferramenta pelo qual o cidadão pode escolher quem o representará nas instituições políticas da sociedade. Em tese, a representatividade, por intermédio do voto, serviria para nos dar voz dentro dessas instituições. Seria um instrumento "sine qua non" para o exercício da democracia.
Como todos sabem a Democracia é o sistema pelo qual os cidadãos elegem seus representantes legais para tomar decisões buscando o melhor interesse social.
Já naquela época, as mulheres começavam a perceber que sem alguém no poder que pudesse minimamente falar por elas, elas jamais teriam condições iguais na sociedade. 
A luta pelo voto foi bem mais do que a luta por um direito, foi uma luta por representatividade, pelo direito de ser ouvida e levada em consideração, foi uma luta por direitos iguais.
De lá para cá, a participação da mulher na política cresceu consideravelmente, no entanto, ainda é muito incipiente, pois não há o reconhecimento do campo da política como um campo para a mulher, ainda enfrentamos o discurso altamente patriarcal nessas instâncias, onde a mulher só deve atuar de forma meramente figurativa e aquelas que se atrevem a ser mais, são desencorajadas e desinvestidas pela sociedade. O que nos conferem desvantagens históricas não apenas nas decisões políticas, mas também naquelas que envolvem questões inerentes a nossa própria condição feminina.
Prova disso são as pautas que circulam na Câmara dos Deputados, nas quais homens em sua maioria discutem questões ligadas ao feminino. As mais controversas são o Estatuto do Nascituro - PL 478/2007 que ameaça direitos sexuais e reprodutivos, inviabilizando inclusive o aborto previsto no código penal e a PL 5069/13 que dificulta a atenção à vítimas de abuso sexual, com propostas altamente revitimizadoras. 
A recente crise no país, trouxe algo de sintomático na nossa política e na nossa sociedade. Não é por acaso que a divulgação de ideais como o jargão "Bela, recatada e do lar" ganharam força e a falta de mulheres no primeiro escalão do governo foi recebida com naturalidade por alguns setores da sociedade. Isso nos sinaliza retrocessos e nos mostra que em pleno século XXI ainda precisamos lutar por representatividade, por ampliação de espaços nas discussões e decisões políticas, para que não haja nenhum direito a menos. 
Já dizia Simone de Beauvoir: "Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que se manter vigilante durante toda a sua vida."


Sobre a autora: Camila Thiari é Psicóloga por missão na vida, atua na área de Direitos Humanos. É Feminista (assim mesmo com "F" maiúsculo). Acredita no direito de escolha e que a cultura é a forma mais autêntica de expressão humana. Nas horas vagas preenche o vazio existencial com séries, livros e filmes.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Um breve histórico da sexualidade feminina

Iniciamos as postagens do nosso (amado e idealizado) Blog com um levantamento que discute a história da sexualidade feminina. O assunto é cercado de tabus e mitos, portanto a atenção é para os dados históricos que marcam as mudanças estruturais e culturais do comportamento sexual das mulheres! Avante manas!
Em eu seu livro Sexualidade feminina Ana Maria Ramos Seixas afirma que a história da sexualidade perpassa por momentos importantes, que são: pré-história; antiguidade; idade média; idade moderna e idade contemporânea.
Na pré-história a sexualidade era permissiva, o ato sexual se dava de forma quase que exclusivamente para a satisfação física, após milhares de anos surgem algumas normas para a sexualidade e com o contato com as tribos surge o tabu do incesto, termo explicado também por Freud, em seu artigo Totem e Tabu, quando fala das tribos aborígenes que viviam em regime de clãs totêmicos onde era proibida a relação sexual entre membros do mesmo clã. O fim da demonstração da sexualidade dessa época fica marcado com a passagem do sistema matriarcal - a valorização e culto do feminino, materno, procriador e organizadora da sociedade primitiva – para o patriarcal – onde a valorização passa a ser em volta do elemento masculino. É importante ressaltar que a mulher em alguns séculos atrás também tinha seu papel na produção da família, ou vivia-se em uma sociedade matriarcal, que é excluída com a entrada do patriarcado.

Obra de Jean Baptiste Debret

“Deus cria a mulher da costela de Adão, símbolo de dependência, e nomeia o homem ‘senhor de todas as coisas’” (NUNES, 1987, p. 63).

Homoafetividade na Grécia
 
Na antiguidade o patriarcalismo foi se solidificando, pois a origem bíblica do mundo coloca o homem em lugar superior ao da mulher. Aristóteles, filósofo dessa época em que o homem está em um lugar superior ao da mulher, é o primeiro grande teórico a falar sobre sexualidade em seu livro Ética e Nicômaco, onde justifica e legitima o modelo patriarcal do domínio da mulher. É nesse mesmo período na Grécia que surgem também as primeiras formas de homoafetividade, pois amar a mulher e rapazes era prática comum e livre, admitida pela opinião social e estimulada por instituições pedagógicas, militares e religiosas.
 
No início da Idade Média as mulheres eram consideradas como reservas de trabalho e manipuladas de acordo com a vontade dos homens. Nesse período a mulher tinha um alto valor de mercado, isso não as tornava mulheres mais poderosas, apenas mais valorizadas enquanto mercadoria, mesmo que sofressem todo o tipo de atrocidades de seus maridos, para os quais, casamento era uma excelente relação, pois continuavam com sua liberdade enquanto para a esposa, restava a monotonia e a negação.
Essa época é retratada como período negro da história, pois foi marcado pelo poder soberano da Igreja Católica que exerceu forte influência sobre o adestramento da sexualidade feminina em nome da superioridade masculina e, sendo o homem considerado à época um ser superior, cabia a ele exercer toda autoridade sobre a mulher o que resultou em uma mulher mutilada e privada de exercer seus direitos e seu prazer com ou sem parceiro.

"Belas, recatadas e do lar"
  

Las tres Gracias - Rubens
Cézar Nunes em seu livro Desvendando a sexualidade define de forma sucinta a entrada da sexualidade na modernidade, quando afirma que “o mundo moderno que surge é um mundo profano, crítico, liberal, que elege a razão como nova forma de compreensão do mundo rejeitando a fé e os dogmas medievais”. Desse modo o sexo torna-se forma popular de expressão, a nudez fica a critério das artes, nas pinturas e esculturas, o adultério feminino se torna comum, surgem os bordéis e casas de banho por toda a Europa e alguns países toleram e estimulam a prostituição.  

 
 
Com a concretização da reforma e contra - reforma, movimento liderado por Martin Lutero que ia contra as arbitrariedades da igreja católica, a sexualidade ganha um valor moral diferenciado, onde o sexo é visto como algo natural e o prazer é admitido, mas sempre dentro do casamento. 
Lutero e Katharina Von Bora

Weber descreve essa época em A ética protestante e o espírito do capitalista, onde afirma que "... a moral luterana será uma moral agostiniana, regulando a sexualidade no nível biológico da procriação, já que as máquinas precisavam de mão-de-obra abundante e barata" e conclui afirmando que:
"A pedagogia e a moral luterana começam a mapear o corpo, reduzindo sexualidade a um isolamento e uma negatividade assustadores. A nudez, que na época medieval era vista com naturalidade, começa a ser coberta de panos e conceitos. A linguagem sobre o sexo passa a ser controlada, e nos livros tudo o que trata do sexo é expurgado ".
Assim se dá a entrada da sexualidade no conceito de luta de classes, onde a procriação é tida como instrumento de aumento de mão de obra para o crescente espírito capitalista dominante na época. Nessa época nasce sobre o sexo,  à cultura da vergonha e do pecado em níveis tão profundos que nem mesmo a Idade Média tinha conseguido.
 
Mulheres trabalham em fábrica de munição
   Fonte: Archive of Modern Conflict London/Reuters
Com a revolução Industrial, houve a entrada novamente da mulher na história como operária, juntamente com o homem, mas era uma mão-de-obra, explorada, com baixa renda, o que caracteriza no advento do mundo capitalista no século XIX. Além disso, esse período é marcado por um grande aumento no nível de comunicação que servem de aparelho ideológico para atingir as massas, dessa forma explodem diversas formas de movimentos de contestação os jovens, o rock, os grupos feminista, negros, homossexuais, etc. Em todos os movimentos estava presente a libertação sexual, que era símbolo e matriz de outras liberdades exigidas. Há também outro grande marco que diz respeito exclusivamente as mulheres: a pílula anticoncepcional, pois com ela surge a possibilidade do sexo por prazer que passa não só a ser permitido, mas exigido pelas mulheres, como afirma Mariana Laurini em sua Dissertação de doutorado. 
Em seu artigo sobre A identidade da mulher na modernidade Josênia Vieira escreve que entre as duas guerras mundiais, houve uma grande mudança na visão romântica sobre o amor, sobressaltando assim uma forma mais natural de visão sobre o assunto, essa mudança ocorre principalmente através das influências do cinema, das roupas da moda e também dos meios de comunicação da época.

Nesse cenário se inicia uma mudança em relação ao gênero feminino, onde a mulher obtém uma maior liberdade, mas ainda com alguns tabus. Nesse período há uma importante mudança de paradigmas sobre a sexualidade feminina onde o lugar do sexo, antes discutido pela igreja, ganha espaço nas diversas áreas de conhecimento científico, tais quais a medicina, a biologia , a psiquiatria, a demografia e a política, que passam a se preocupar com o sexo, construindo novos conceitos e imagens sobre a mulher, que são estendidos ao gênero feminino como um todo. Esse novo cenário, apresenta à mulher contemporânea a capacidade de impor sua sexualidade, tendo espaço para preferências e vontades, diferente do passado marcado pela repressão e anulação.

Sobre o sexo na atualidade Josênia Vieira define que hoje a mulher em sua identidade, percebe o sexo como algo que deve ser prazeroso e cercado de novas possibilidades, instalam-se assim novas práticas sexuais marcadas pela liberalidade, onde não há mais necessidade de ocultar-se, pois não se percebem como passíveis de punição.
Nos dias atuais observam-se novas formas de expressão da sexualidade feminina em que as mulheres que absorveram as transformações ocorridas no decorrer do tempo, estabelecem novas formas de relacionamento com outros e consigo. Este fato está interligado a construção da sociedade moderna onde é estimulado o individualismo relacionado ao consumismo e investimento narcísico, como ferramentas para se chegar à satisfação pessoal.
Para finalizar, Fernanda Jota categoricamente descreve que novos mitos femininos estão surgindo para substituir aqueles antes atribuídos às mulheres. A mãe agora é aquela que também trabalha fora de casa. A mulher romântica é também a que seduz ativamente. A mulher passiva eroticamente tornou-se ativa na relação sexual.
Portanto, a mulher contemporânea mostra-se autônoma, dona de si, do seu corpo dos seus desejos. A busca pela satisfação, o desejo de ter estão imbricados no modo de ser das mulheres. Assim, elas se permitem experimentar modos relacionais, antes só permitidos aos homens, como o sexo causal, a ideia de sexo por amor dá lugar à prática sexual para obtenção do prazer próprio.
As mudanças estruturais, no que tange a sexualidade feminina, que se deram ao decorrer dos séculos marcam a luta das mulheres com as diversas figuras de autoridade. Essas conquistas são para que a cada dia tenhamos mais certeza que nosso corpo pertence somente a cada uma de nós...
 
"Mas sou minha, só minha e não de quem quiser"


Ps.: Este texto foi baseado no Trabalho de conclusão de curso para obtenção de título de bacharel em Psicologia, feito à cinco (ou dez) mãos femininas sob o título de "A CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE FEMININA NAS UNIVERSITÁRIAS: UMA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA".
 
Autoras e autores citados no texto (e seus respectivos links):
 
Sobre a autora do texto: Tatiane Rafailov é Psicóloga Clínica, feminista e mãe. Adora cinema, séries e cultura POP. Nas horas vagas escreve bobagens, devaneios, poemas e coisas sérias para extravasar a difícil tarefa de ser e existir.