terça-feira, 24 de maio de 2016

As armadilhas do Estatuto do Nascituro e da PL 5069/13


                                                     imagem retirada do google imagens site: reddit.com

Precisamos falar sobre a Descriminalização do Aborto e precisamos falar agora e urgentemente. Porque a Câmara não vai esperar que resolvamos nossos conflitos internos pra passar por cima de nossa autonomia.
Os projetos de lei em pauta na Câmara são um risco para os direitos das mulheres, pois o primeiro dificulta inclusive os abortos previstos em lei e o outro dificulta o acesso à saúde pelas vítimas de abuso, punindo quem orienta pelo aborto e revitimizando as mulheres ao exigir comprovação do estupro. Daqui a pouco precisaremos de duas vias assinadas pelo estuprador pra não deixar dúvidas sobre o assunto.A verdade é que o congresso se aproveita da mobilização que o assunto traz para incluir artigos que são uma violência contra a mulher.
A polêmica que cerca o tema, sempre faz com que nos inibamos frente às discussões, mas este debate é necessário e precisa ser feito livre do cunho religioso, ético ou moral. Devemos discuti-lo no âmbito do conhecimento técnico e legal e isso não significa desmerecer o ponto de vista moral, mas trazê-lo para uma discussão sócio-histórica que o trate em sua repercussão social, considerando as representações sociais que o aborto suscita.
Em nossa sociedade possuímos o mito da família feliz, de que só é possível ser feliz aos pares. No qual, uma mulher só pode ser completa quando alcança a tríade: cresce, casa e tem filhos. Resultado de nossa herança patriarcal, a posição da mulher na família e na sociedade nos mostra que ainda é difícil para a sociedade estabelecer qualquer relação com o feminino que não seja de poder e dominação dos corpos e autonomia das mulheres.
Essa necessidade de corresponder a um modelo social, faz com que não falemos sobre o aborto. Mas ele ocorre e é uma realidade. Mata milhares de mulheres ao ano.  O aborto, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde é a quinta maior causa de morte materna no Brasil. Além disso, estima-se que 01 em cada 07 mulheres já tenha realizado o procedimento voluntariamente. Milhares de mulheres e adolescentes morrem pela desassistência do sistema ao ano, pois a legislação trata um problema que é exclusivamente de saúde pública, numa instância criminal.
A questão do aborto ultrapassa limites legais, crenças religiosas e convenções sociais. Isso porque a criminalização, nesse caso, não inibe a prática e mata mulheres. Que não podendo realizar procedimentos seguros, recorrem a toda sorte de práticas clandestinas.
Por isso, o cerne de sua discussão precisa ser o fato de que o aborto é previsto no código penal com uma pena de reclusão, o que faz com que mulheres realizem o procedimento na clandestinidade, sem condições mínimas de segurança.
Além disso, a discussão sobre o tema no Brasil está anos luz de atraso na pauta mundial, e, é lamentável que um país que é signatário de tantos tratados na área de Direitos Humanos, continue a discutir o tema com opiniões simplórias e pautadas na imperícia e moralidade.
Repito, o aborto tem que ser discutido no ponto de vista técnico. E isso significa assumir que embora a ciência, sim, a ciência porque estamos num Estado Laico, ou pelo menos deveria ser, não tenha uma definição sobre quando a vida começa é mister considerar que a vida é um conceito bem mais amplo que o mero aspecto biológico do ser. Os médicos já se posicionaram sobre isso, até os três meses de gravidez o feto, embora seja uma vida em potencial, ainda não formou o SNC e isso significa dizer que ainda não possui respostas cerebrais. Sendo possível a realização do procedimento com riscos mínimos para a mulher.
E com isso, não quero negligenciar aquelas que escolhem serem mães. Acredito piamente que a maternidade é um dom e crianças são uma dádiva, mas não necessariamente uma experiência fundamental para todas as mulheres, como a sociedade quer nos fazer acreditar. Tem mulheres que não querem ser mãe e tudo bem. Assim, como tem aquelas que escolhem ser mãe e tudo bem também. Mas é preciso pensar naquelas a quem a escolha não foi facultada. Claro que falar de desinformação numa sociedade globalizada parece distante da realidade. Mas gente, em pleno século XXI tem gente pedindo a volta da ditadura, se isso não é falta de informação, então não sei o que é.
Falando sério, num país de dimensões como nosso, ainda existem meninas que devido a pressão do namorado, cedem ao apelo de não usar camisinha, de considerar que  a tabelinha e o coito interrompido é um método válido. E pasmem, a pílula anticoncepcional não é um método 100% seguro, na realidade sua eficácia é de 98 a 99%, o que nos sobra aquele 1%, que acreditem acontece. 
Mas você pode pensar, idiota dela que cedeu a esse tipo de apelo. Responda-me, sinceramente, você acredita que mulheres são ensinadas a não ceder ao anseio masculino? somos ensinadas a sermos fortes em nossas convicções? Isso pode ser realidade pra você, mulher de classe média que teve oportunidade de estudar e estar num ambiente favorável pra desconstruir o lugar da mulher na sociedade. Mas enquanto aquela adolescente que nunca teve outra vivência que não aquilo que lhe impuseram; e aquelas meninas que sofrem o abuso na família e lhe dão ervas pra esconder a vergonha familiar. Nosso Brasil é muito mais do que os centros metropolitanos.
Garantir a assistência do sistema é garantir humanidade nos atendimentos. Ninguém acorda de manhã e pensa: "Meu Deus, que dia lindo. Acho que vou abortar hoje." Tratar a questão do aborto de forma banal é um desserviço a essas mulheres e uma desonestidade intelectual.
É preciso falar da quantidade de sofrimento psicológico infligido a mulher que passa por uma gravidez indesejada, pois às vezes a gravidez ocorre no corpo, mas não ocorre na cabeça. Isso pode desencadear uma série de adoecimentos, sem falar da dificuldade dessa mãe vincular com uma criança que não é objeto de seu desejo. Ou mesmo dessa criança que não é objeto de desejo de ninguém. Por isso a decisão de ser mãe é algo pessoal, algumas mães conseguem superar o fato da criança não ser desejada naquele momento, outras não. É a mulher quem vivencia o destoante de estar grávida e não desejar aquela criança, quando a sociedade diz que ela deveria. 
Eu posso ser contra a decisão de abortar por questões morais, religiosas, o que for, mas isso não significa que eu deva negar a outras o direito de escolher. Descriminalizar o aborto não vai mudar a opinião de ninguém sobre o tema, mas vai garantir procedimentos seguros para quem precisa fazer um. Primordial lembrar que as pessoas mais afetadas pela clandestinidade são as mulheres pobres e de origem periférica, pois são elas que precisam recorrer ao serviço público.
Aceitar a discussão do ponto de vista técnico, significa reconhecer que a minha opinião moral e religiosa sobre o assunto foi construída a partir de uma série de heranças culturais e convenções sociais  e que é necessário outros construtos sociais para dar conta do tema.
Nunca é demais lembrar que ser a favor do aborto não tem relação alguma com a decisão de abortar. É uma luta pelo direito de escolha. Por um sistema que deixe de privilegiar as classes abastadas, porque não se engane, é axiomático que as ricas abortam e as pobres morrem.

Sobre a autora: Camila Thiari é Psicóloga por missão na vida, atua na área de Direitos Humanos. É Feminista (assim mesmo com "F" maiúsculo). Acredita no direito de escolha e que a cultura é a forma mais autêntica de expressão humana. Nas horas vagas preenche o vazio existencial com séries, livros e filmes.

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