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Precisamos falar sobre a
Descriminalização do Aborto e precisamos falar agora e urgentemente. Porque a
Câmara não vai esperar que resolvamos nossos conflitos internos pra passar por
cima de nossa autonomia.
Os projetos de lei em pauta na Câmara
são um risco para os direitos das mulheres, pois o primeiro dificulta inclusive
os abortos previstos em lei e o outro dificulta o acesso à saúde pelas
vítimas de abuso, punindo quem orienta pelo aborto e revitimizando as mulheres
ao exigir comprovação do estupro. Daqui a pouco precisaremos de duas vias
assinadas pelo estuprador pra não deixar dúvidas sobre o assunto.A verdade é que o congresso se
aproveita da mobilização que o assunto traz para incluir artigos que são uma violência
contra a mulher.
A polêmica que cerca o tema, sempre
faz com que nos inibamos frente às discussões, mas este debate é necessário e
precisa ser feito livre do cunho religioso, ético ou moral. Devemos discuti-lo no âmbito do conhecimento técnico e legal e isso não
significa desmerecer o ponto de vista moral, mas trazê-lo para uma discussão
sócio-histórica que o trate em sua repercussão social, considerando as
representações sociais que o aborto suscita.
Em nossa sociedade possuímos o mito
da família feliz, de que só é possível ser feliz aos pares. No qual, uma mulher
só pode ser completa quando alcança a tríade: cresce, casa e tem filhos.
Resultado de nossa herança patriarcal, a posição da mulher na família e na
sociedade nos mostra que ainda é difícil para a sociedade estabelecer qualquer
relação com o feminino que não seja de poder e dominação dos corpos e autonomia
das mulheres.
Essa necessidade de corresponder a um
modelo social, faz com que não falemos sobre o aborto. Mas ele ocorre e é uma
realidade. Mata milhares de mulheres ao ano. O aborto, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde é a quinta
maior causa de morte materna no Brasil. Além disso, estima-se que 01 em cada 07
mulheres já tenha realizado o procedimento voluntariamente. Milhares de mulheres
e adolescentes morrem pela desassistência do sistema ao ano, pois a legislação
trata um problema que é exclusivamente de saúde pública, numa instância
criminal.
A questão do aborto ultrapassa
limites legais, crenças religiosas e convenções sociais. Isso porque a
criminalização, nesse caso, não inibe a prática e mata mulheres. Que não
podendo realizar procedimentos seguros, recorrem a toda sorte de práticas
clandestinas.
Por isso, o cerne de sua discussão
precisa ser o fato de que o aborto é previsto no código penal com uma pena de
reclusão, o que faz com que mulheres realizem o procedimento na
clandestinidade, sem condições mínimas de segurança.
Além disso, a discussão sobre o tema
no Brasil está anos luz de atraso na pauta mundial, e, é lamentável que um país
que é signatário de tantos tratados na área de Direitos Humanos, continue a
discutir o tema com opiniões simplórias e pautadas na imperícia e moralidade.
Repito, o aborto tem que ser
discutido no ponto de vista técnico. E isso significa assumir que embora a
ciência, sim, a ciência porque estamos num Estado Laico, ou pelo menos deveria
ser, não tenha uma definição sobre quando a vida começa é mister considerar que
a vida é um conceito bem mais amplo que o mero aspecto biológico do ser. Os
médicos já se posicionaram sobre isso, até os três meses de gravidez o feto,
embora seja uma vida em potencial, ainda não formou o SNC e isso significa
dizer que ainda não possui respostas cerebrais. Sendo possível a realização do
procedimento com riscos mínimos para a mulher.
E com isso, não quero negligenciar
aquelas que escolhem serem mães. Acredito piamente que a maternidade é um dom e
crianças são uma dádiva, mas não necessariamente uma experiência fundamental
para todas as mulheres, como a sociedade quer nos fazer acreditar. Tem mulheres
que não querem ser mãe e tudo bem. Assim, como tem aquelas que escolhem ser mãe
e tudo bem também. Mas é preciso pensar naquelas a quem a escolha não foi
facultada. Claro que falar de desinformação numa sociedade globalizada parece
distante da realidade. Mas gente, em pleno século XXI tem gente pedindo a volta
da ditadura, se isso não é falta de informação, então não sei o que é.
Falando sério, num país de dimensões
como nosso, ainda existem meninas que devido a pressão do namorado,
cedem ao apelo de não usar camisinha, de considerar que a tabelinha e o
coito interrompido é um método válido. E pasmem, a pílula anticoncepcional não
é um método 100% seguro, na realidade sua eficácia é de 98 a 99%, o que nos
sobra aquele 1%, que acreditem acontece.
Mas você pode pensar, idiota dela que
cedeu a esse tipo de apelo. Responda-me, sinceramente, você acredita que
mulheres são ensinadas a não ceder ao anseio masculino? somos ensinadas a
sermos fortes em nossas convicções? Isso pode ser realidade pra você, mulher de
classe média que teve oportunidade de estudar e estar num ambiente favorável
pra desconstruir o lugar da mulher na sociedade. Mas enquanto aquela
adolescente que nunca teve outra vivência que não aquilo que lhe impuseram; e aquelas
meninas que sofrem o abuso na família e lhe dão ervas pra esconder a vergonha
familiar. Nosso Brasil é muito mais do que os centros metropolitanos.
Garantir a assistência do sistema é
garantir humanidade nos atendimentos. Ninguém acorda de manhã e pensa:
"Meu Deus, que dia lindo. Acho que vou abortar hoje." Tratar a
questão do aborto de forma banal é um desserviço a essas mulheres e uma
desonestidade intelectual.
É preciso falar da quantidade de sofrimento
psicológico infligido a mulher que passa por uma gravidez indesejada, pois às
vezes a gravidez ocorre no corpo, mas não ocorre na cabeça. Isso pode
desencadear uma série de adoecimentos, sem falar da dificuldade dessa mãe
vincular com uma criança que não é objeto de seu desejo. Ou mesmo dessa criança
que não é objeto de desejo de ninguém. Por isso a decisão de ser mãe é algo
pessoal, algumas mães conseguem superar o fato da criança não ser desejada
naquele momento, outras não. É a mulher quem vivencia o destoante de estar
grávida e não desejar aquela criança, quando a sociedade diz que ela
deveria.
Eu posso ser contra a decisão de abortar por
questões morais, religiosas, o que for, mas isso não significa que eu deva
negar a outras o direito de escolher. Descriminalizar o aborto não vai mudar a
opinião de ninguém sobre o tema, mas vai garantir procedimentos seguros para
quem precisa fazer um. Primordial lembrar que as pessoas mais afetadas pela
clandestinidade são as mulheres pobres e de origem periférica, pois são elas
que precisam recorrer ao serviço público.
Aceitar a discussão do ponto de vista
técnico, significa reconhecer que a minha opinião moral e religiosa sobre o
assunto foi construída a partir de uma série de heranças culturais e convenções
sociais e que é necessário outros construtos sociais para dar conta do
tema.
Nunca é demais lembrar que ser a
favor do aborto não tem relação alguma com a decisão de abortar. É uma luta
pelo direito de escolha. Por um sistema que deixe de privilegiar as classes
abastadas, porque não se engane, é axiomático que as ricas abortam e as pobres
morrem.
Sobre a autora: Camila Thiari é Psicóloga por missão na vida, atua na área de Direitos Humanos. É Feminista (assim mesmo com "F" maiúsculo). Acredita no direito de escolha e que a cultura é a forma mais autêntica de expressão humana. Nas horas vagas preenche o vazio existencial com séries, livros e filmes.
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