terça-feira, 7 de junho de 2016

A cultura do estupro e a culpabilização da vítima

                                          Imagem: arquivo pessoal (Marcha das Flores/2016)
   
Durante essas semanas, notei que muita gente tinha uma certa dificuldade em entender essa realidade violenta do estupro associada ao termo "cultura". Acabei lendo muito comentário estúpido para tentar entender qual era a real dificuldade, já que para mim isso é tão límpido quanto a água. Após análise, me dei conta que a dificuldade vinha da falta de compreensão da complexidade do termo "cultura". Por isso, acho válido trazer a definição social da palavra para então fazermos um reflexão sobre o assunto.
O termo cultura pode ser entendido sim como artes, literatura e todas as coisas boas decorrentes do processo de criação humana, afinal de contas, a palavra cultura vem de cultivar. Mas também tem a ver com ideologias, crenças e hábitos transmitidos socialmente, pois o que são as convenções sociais senão normas cultivadas na sociedade?!
E partindo do pressuposto de que a cultura se refere também à crenças e hábitos adquiridos, podemos pensar ainda no processo de interiorização de conceitos.
Já tratei em outro texto, mais precisamente no texto: As sufragistas e a importância da representatividade feminina, sobre a herança patriarcal da nossa sociedade. A posição que a mulher ocupa hoje na família, como eixo de sustentação do lar, e na sociedade demonstra claramente que nossa organização social veio das bases do pensamento patriarcal, pois assim como também já trouxemos em outros textos como Um breve histórico sobre a sexualidade feminina e Bruxa, o lugar da mulher foi modificado socialmente após a expansão do cristianismo e no nosso caso com a colonização europeia. Por isso, existe uma série de questões sócio-históricas que delegam a mulher o amadurecimento precoce, a responsabilização pela família e pelo lar e a culpabilização por não corresponder ao ideal social.
Já se perguntou porque dizemos que a menina já tem idade suficiente pra saber o que está fazendo, mas quando é um menino, dizemos que ele é só um moleque? As meninas são ensinadas a cuidar da casa, enquanto os meninos são ensinados a conquistar o que quiser. Dizemos as nossas filhas que quando um menino bate nela, é porque ele gosta dela, estabelecendo assim as bases para aceitação do abuso. E fazemos isso porque aprendemos assim. Aprendemos que não devemos usar saia curta, porque isso pode soar como provocativo para os meninos, que devemos agir de certa maneira porque mulheres devem agir assim, que não devemos sair à noite sozinhas, porque somos mulheres e podemos ser atacadas. Isso é cultura do estupro e ela tem bases históricas que levam a sociedade a culpabilizar a vítima.
Recentemente, tivemos declarações de um artista musical que assediou uma repórter publicamente e longe de pedir desculpa, justificou que era apenas um moleque de 21 anos. Também tivemos uma garota de 16 anos violentada, cuja violência foi exposta em vídeos, áudios e o escambau, mas bastou um dos acusados dizer que foi consensual que a palavra daquela garota foi desvalorizada. Os juízes das redes sociais foram rápidos e vasculharam a vida da garota a fim de encontrar um milhão de situações que justificavam a agressão sofrida, como se houvesse justificativa para tal ato. O crime dela: não corresponder a expectativa social. O crime dele: ser um moleque que não sabe o que diz.
Quando alguém diz que a cultura do estupro não existe ou que é invenção de 'feminazi', um unicórnio com certeza morre no reino da fantasia que tal pessoa criou. Porque a cultura do estupro é uma realidade e vivemos ela cotidianamente, talvez você não saiba no que ela consiste, talvez você a reproduza diariamente e nem perceba. O assédio é algo constante para mulheres, pois somos objetificadas pela mídia e obrigadas a nos comportar dentro de um padrão social. 
Quantas coisas você deixou de fazer por ser mulher? Eu gosto de correr, mas não corro a noite no parque, porque afinal de contas sou mulher e correr sozinha é sempre um risco, principalmente em lugares escuros. Talvez você goste de viajar, mas não o faz sozinha porque é mulher e mulheres não devem sair por aí.
Quantas vezes você mulher disse a sua filha, sobrinha ou agregadas pra não usar aquela saia por ser muito curta ou não usar aquele batom porque não é adequado para a idade dela? Eu sei e você sabe que só estava protegendo ela. Mas por qual motivo você precisa protegê-la?
E quanto a você homem, quantas vezes recebeu vídeos expondo mulheres e repassou como se isso fosse natural? Quantas vezes teve a decência de parar um amigo que estava passando da conta com uma garota na festa ao invés de julgá-la pela roupa que veste ou pelo grau etílico? 
Quando dizemos que todo homem é um potencial estuprador não estamos dizendo que nossos pais, amigos e irmãos são estupradores, embora temos consciência de que provavelmente eles também reproduzem a cultura do estupro sem perceber, pois foram ensinados que é assim que homens tem de agir. Estamos dizendo que se alguém se aproxima de nós, mulheres, num beco escuro, preferimos que sejam mil demônios a um homem. Porque temos medo e temos medo porque somos ensinadas a temer e não é por nossa vida que mais tememos, tememos por nosso corpo, tememos pela violência que subjuga a alma. Porque diferente do que a maioria parece acreditar, o estupro não tem a ver com libido, não é um impulso irrefreável ao qual o homem é acometido, o estupro é sobre poder, é sobre dominação. Não vou adentrar nesse tema, pois existe um outro texto aqui do blog sobre isso.
O fato é que precisamos desconstruir o nosso machismo de cada dia, pois ele tolda a vida de homens e mulheres, cujos papéis sociais estão pré-definidos. Precisamos parar de ensinar nossas crianças que homens e mulheres não são iguais na sociedade, eles tem diferenças biológicas, mas isso não significa que tem diferenças sociais. Quando Simone de Beauvoir diz que não se nasce mulher, torna-se mulher, ela não estava falando do biológico, mas da construção social.
Aliás, sempre que uma mulher diz que é contra o feminismo fico pensando: então ela é contra o direito de escolha? contra a equidade de gênero? ela acha que mulheres só tem valor se forem belas, recatadas e do lar? Ou talvez ela não saiba que o feminismo significa. Então só pra esclarecer: feminismo não é o antônimo de machismo. O machismo é uma estrutura social com bases que significam a vida a partir da relação de dominação e de expropriação dos corpos e autonomia das mulheres, o feminismo é uma ideologia que luta pela equidade de gênero. Por essas e outras que digo que falta sim amor no mundo, mas falta principalmente interpretação de texto e conhecimento. 

Mas enfim, precisamos parar de culpabilizar a vítima pela agressão ou violência sofrida, precisamos parar de buscar justificativas e começar a buscar meios de modificar a realidade em que vivemos. 


Sobre a autora: Camila Thiari é Psicóloga por missão na vida, atua na área de Direitos Humanos. É Feminista (assim mesmo com "F" maiúsculo). Acredita no direito de escolha e que a cultura é a forma mais autêntica de expressão humana. Nas horas vagas preenche o vazio existencial com séries, livros e filmes.

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